9.10.06

Aqueles éramos nós

Lee Friedlander [n. 1934] | Self-Portrait | Haverstraw, New York | 1966
Lee Friedlander [n. 1934] | Self-Portrait | Haverstraw, New York | 1966

A ausência de nuvens prometia um dia de claridade e calor. Era o fim do Estio, mas o ar continuava abafado. A cada inspiração sentíamos o aroma da boca do outro, com a nítida sensação de que o ar que agora respirávamos havia já percorrido outros pulmões. Uma inspiração mais profunda encher-nos-ia o peito do cheiro dos dejectos caninos que se acumulavam nas bermas. A cada mirada, o alcatrão da estrada desfigurava-se mais sob o vapor que emanava. A recta imensa à nossa frente parecia cada vez mais uma tortuosa sequência de curvas delimitadas por duas linhas brancas paralelas. Esforçávamo-nos ambos por manter os olhos abertos antes de bebermos café.
Contámos as curvas do caminho: exactamente 112, desde que partíramos pela última vez. O conta-quilómetros somava, até então, 79.326 unidades. O ponteiro do depósito descia alucinadamente em direcção à reserva e os pneus, desejosos de descanso já antes da partida, chiavam a cada travagem e perpetuavam no asfalto a nossa passagem por aquele exacto ponto.
Os vidros descidos convidavam os insectos a entrar. O intenso aroma que exalávamos a suor e saliva misturados com poeira atraía-os e eram visíveis nos braços, no rosto e no peito as marcas das picadas. Baixávamos as palas para protegermos os olhos da luz mas continuávamos a evitar ver a nossa imagem reflectida nos pequenos espelhos rectangulares. Não queríamos acreditar que aqueles éramos nós.
No rádio, a mesma cassete sempre a rolar dava-nos a ouvir Bigger, Stronger, dos Coldplay.

I wanna be bigger, stronger, drive a faster car
To take me anywhere in seconds,
To take me anywhere I wanna go...

De vez em quando parávamos debaixo de algum alpendre de uma estação de serviço. Saíamos do carro e contorcíamo-nos com dores ao escutar o som das nossas costas despidas a descolarem-se dos estofos do carro. Maldizíamos a todo o instante a opção pelo cabedal preto que, além de se nos agarrar à pele, concentrava o quente. E logo em seguida dizíamos mal de nós mesmos por irreflectidamente termos encravado a capota quando, num acesso de estupidez, preferimos a força à habilidade naquela manhã em que o mecanismo se recusara a fechar.
Tirávamos os chapéus e ríamos das figuras um do outro: cabelos ensopados, colados à testa, a lembrar os tempos em que corríamos até à exaustão atrás dos gatos.
Quando crianças, tínhamos por passatempo apanhar os gatos sem dono que abundavam na aldeia e atar-lhes ao rabo latas e caricas vazias para soltá-los em seguida. Depois dávamos estridentes gargalhadas enquanto os víamos correr desalmadamente em círculo, assustados com o barulho e convictos de que estavam a ser perseguidos por algo ameaçador e desconhecido. Quando os pobrezinhos tombavam, línguas de fora, olhos cerrados pelo desmaio, erguíamo-nos cheios de dores de barriga, caminhávamos até eles e cortávamos a guita que segurava as latas e as caricas e que tencionávamos usar para atormentar o próximo felino que se atravessasse à nossa frente.
Lavávamos as mãos e os pés nas casas de banho das estações de serviço e, se estivessem desertas, aproveitávamos para matar a fome do corpo e fazíamos amor em pé, dentro de uma cabine, silenciosamente. O frio dos azulejos aliviava-me o calor e, por isso, eu não me importava de ser empurrada contra as paredes sujas das cabines das casas de banho das estações de serviço enquanto fazíamos amor.
Depois comíamos e bebíamos do que houvesse enquanto ouvíamos as conversas dos outros. Não trocávamos palavra, nem entre nós, nem com estranhos. Limitávamo-nos a acenar com a cabeça à entrada e à saída e a levar as mãos aos chapéus em gesto de cortesia, sem que, contudo, fôssemos corteses.

I think I need to change my attitude,
I think I wanna change my oxygen,
I think I wanna change my air...

A cada paragem trocávamos de lugar. Quando nos aproximávamos do carro sabíamos já para que lado haveríamos de nos dirigir. Seguia-se o ritual de ajustamento dos bancos e dos retrovisores e logo a ignição soava e o motor começava a rugir. Fazíamo-nos à estrada e a única certeza que tínhamos era a de que a viagem se prolongaria enquanto víssemos rectas entrecortadas por curvas à nossa frente, enquanto nos guiassem duas linhas brancas paralelas.

I wanna be bigger, stronger, drive a faster car.
At the touch of a button
I can go anywhere I wanna go.

E era nesse exacto instante, em que um de nós esmagava o acelerador e os pneus do carro começavam a fustigar a areia, que sabíamos que a tormenta do calor, a tortura dos mosquitos, o incómodo dos cheiros pestilentos e da nossa própria sujidade e o desconforto de fazer amor em pé em casas de banho imundas seriam sempre suportáveis, desde que tivéssemos a companhia um do outro.

© [m.m. botelho], de partida, ao som de Bigger, Stronger, dos Coldplay, do EP Safety [1998].



I wanna be bigger, stronger, drive a faster car / To take me anywhere in seconds, / To take me anywhere I wanna go, / And drive around a faster car, / I will settle for nothing less, / I will settle for nothing less.
I wanna be bigger, stronger, drive a faster car, / At the touch of a button / I can go anywhere I wanna go / And drive around my faster car, / I will settle for nothing less, / I will settle for nothing less.
I think I wanna change my attitude / I think I wanna change my oxygen / I think I wanna change my air, / My amorous fear, I wanna choke.